sexta-feira, 2 de outubro de 2020

A LIBERDADE ESTÁ ONDE O CORAÇÃO ESTÁ

            Da minha sala de aula vi, outro dia, uma tesourinha; aquele passarinho que tem o rabo parecido com uma tesoura,  bater incansável na vidraça da janela de uma casa vizinha. Parecia querer entrar a qualquer custo, como se lá dentro estivesse a coisa mais importante do mundo para ele. Batia com tanta força, que, de onde eu estava, eu podia ouvir o barulho das bicadas que ele dava no vidro.
Quando cansava, pousava na ponta da veneziana aberta. Ficava ali alguns instantes e depois voltava a bater desesperado na janela. Mais alguns minutos e voava para um fio de luz que se estendia do poste até a casa. Balançava-se ao vento forte agarrado ao fio e, depois, alçava voo e sumia por um longo tempo. Voltava, novamente, e repetia o mesmo ritual.
            Meus alunos riam de mim. “É só um passarinho, o que tem de tão especial nisso”, um deles comentou. Achei melhor ficar quieto. Mas eu sabia que não era só um passarinho. Era um passarinho em busca de alguma coisa. E quando um passarinho busca, desesperado, alguma coisa, não é mais só um passarinho. É um passarinho com um desejo. E um passarinho com um desejo é um passarinho infeliz. É um passarinho buscando algo lhe falta ou lhe roubaram, ou algo que ele perdeu.
            “Talvez ele tenha se enxergado na vidraça e esteja brigando com ele mesmo. Passarinhos são assim, não sabem o que fazem.” Exclamou outro aluno. Não, pensei, quando um passarinho se enxerga, se reconhece, cessa a vontade de lutar. Desaparece o desejo. Sente-se completo. Por que, então, com toda a liberdade do mundo, com o infinito a sua volta, ele, ainda assim, buscava alguma coisa atrás daquela vidraça?
            Vocês vão dizer que eu enlouqueci. Mas, eu juro que decidi perguntar isso a ele. Sim, ao passarinho: ei, amigo, será que eu posso ajudar? Disse-lhe em pensamento. O que você está buscando tão desesperadamente aí dentro? Silêncio absoluto. Insisti: eu gostaria de poder ajudar. Diga-me o que eu posso fazer?
            De repente, eu ouvi, nitidamente, a voz do passarinho dizer: feche os olhos e me diga você! O que você acha que eu estou procurando? Você também está se sentindo como eu. Só que você está atrás da vidraça. Olhe com calma para dentro de você e me diga: o que se esconde dentro de sua alma.   Pois é exatamente isso que eu estou buscando. 
Não pode ser. Você não pode estar buscando o mesmo que eu. Eu não tenho asas. Se as tivesse, certamente iria por aí em busca do horizonte, da felicidade. Voaria pelos quatro cantos do mundo. Mergulharia em todos os oceanos. Perseguiria o verão eternamente. Habitaria todos os espaços. Ouviria os sons das matas e das cachoeiras. Pairaria além dos trovões e das chuvas. Sentir-me-ia imbatível. Mais forte que a força de todos os mares. Mais importante que todos os reis da terra. Faria milagres. Transformaria água em vinho.  Lágrimas em sorrisos. Sonhos em verdades. Desviaria rios de seus cursos, para matar a sede das terras áridas. Mataria a forme do mundo. Adotaria todas as crianças. Aplacaria todas as guerras. Sentiria o doce gosto da liberdade. Você, no entanto, apesar das asas,parece buscar a prisão. Parece querer confinar-se em um mundo com janelas fechadas.
Depois de longo silêncio, ouvi, cansada, a voz do passarinho: Viu, agora você sabe o que eu estou fazendo com tanto desespero. Estou buscando exatamente o que você busca e definiu tão bem. Sabe, amigo... disse-me ele, ontem quando voávamos juntos eu e minha amada, ela distraiu-se por um segundo e entrou por esta janela que ainda estava aberta. E, alguém, inadvertidamente, a trancou lá dentro.  Entendes agora? Minha liberdade está lá  dentro, incomunicável, isolada -  que diferença faz ter asas?
            Pessoal, disse eu, retomando minha aula -  eu quero que vocês escrevam um parágrafo sobre o seguinte tema:  “A liberdade está onde o coração está.” Quanto vale, professor? Perguntou-me um aluno. Digam-me vocês, respondi-lhe.