Da
minha sala de aula vi, outro dia, uma tesourinha; aquele passarinho que tem o
rabo parecido com uma tesoura, bater
incansável na vidraça da janela de uma casa vizinha. Parecia querer entrar a
qualquer custo, como se lá dentro estivesse a coisa mais importante do mundo
para ele. Batia com tanta força, que, de onde eu estava, eu podia ouvir o barulho
das bicadas que ele dava no vidro.
Quando cansava, pousava na ponta da
veneziana aberta. Ficava ali alguns instantes e depois voltava a bater
desesperado na janela. Mais alguns minutos e voava para um fio de luz que se
estendia do poste até a casa. Balançava-se ao vento forte agarrado ao fio e,
depois, alçava voo e sumia por um longo tempo. Voltava, novamente, e repetia o
mesmo ritual.
Meus alunos riam de mim. “É só um
passarinho, o que tem de tão especial nisso”, um deles comentou. Achei melhor
ficar quieto. Mas eu sabia que não era só um passarinho. Era um passarinho em
busca de alguma coisa. E quando um passarinho busca, desesperado, alguma coisa,
não é mais só um passarinho. É um passarinho com um desejo. E um passarinho com
um desejo é um passarinho infeliz. É um passarinho buscando algo lhe falta ou
lhe roubaram, ou algo que ele perdeu.
“Talvez ele tenha se enxergado na
vidraça e esteja brigando com ele mesmo. Passarinhos são assim, não sabem o que
fazem.” Exclamou outro aluno. Não, pensei, quando um passarinho se enxerga, se
reconhece, cessa a vontade de lutar. Desaparece o desejo. Sente-se completo.
Por que, então, com toda a liberdade do mundo, com o infinito a sua volta, ele,
ainda assim, buscava alguma coisa atrás daquela vidraça?
Vocês vão dizer que eu enlouqueci.
Mas, eu juro que decidi perguntar isso a ele. Sim, ao passarinho: ei, amigo,
será que eu posso ajudar? Disse-lhe em pensamento. O que você está buscando tão
desesperadamente aí dentro? Silêncio absoluto. Insisti: eu gostaria de poder
ajudar. Diga-me o que eu posso fazer?
De repente, eu ouvi, nitidamente, a
voz do passarinho dizer: feche os olhos e me diga você! O que você acha que eu
estou procurando? Você também está se sentindo como eu. Só que você está atrás
da vidraça. Olhe com calma para dentro de você e me diga: o que se esconde
dentro de sua alma. Pois é exatamente isso
que eu estou buscando.
Não pode ser. Você não pode estar
buscando o mesmo que eu. Eu não tenho asas. Se as tivesse, certamente iria por
aí em busca do horizonte, da felicidade. Voaria pelos quatro cantos do mundo.
Mergulharia em todos os oceanos. Perseguiria o verão eternamente. Habitaria
todos os espaços. Ouviria os sons das matas e das cachoeiras. Pairaria além dos
trovões e das chuvas. Sentir-me-ia imbatível. Mais forte que a força de todos
os mares. Mais importante que todos os reis da terra. Faria milagres.
Transformaria água em vinho. Lágrimas em
sorrisos. Sonhos em verdades. Desviaria rios de seus cursos, para matar a sede
das terras áridas. Mataria a forme do mundo. Adotaria todas as crianças.
Aplacaria todas as guerras. Sentiria o doce gosto da liberdade. Você, no
entanto, apesar das asas,parece buscar a prisão. Parece querer confinar-se em
um mundo com janelas fechadas.
Depois de longo silêncio, ouvi,
cansada, a voz do passarinho: Viu, agora você sabe o que eu estou fazendo com
tanto desespero. Estou buscando exatamente o que você busca e definiu tão bem.
Sabe, amigo... disse-me ele, ontem quando voávamos juntos eu e minha amada, ela
distraiu-se por um segundo e entrou por esta janela que ainda estava aberta. E,
alguém, inadvertidamente, a trancou lá dentro.
Entendes agora? Minha liberdade está lá dentro, incomunicável, isolada - que diferença faz ter asas?
Pessoal, disse eu, retomando minha
aula - eu quero que vocês escrevam um
parágrafo sobre o seguinte tema: “A
liberdade está onde o coração está.” Quanto vale, professor? Perguntou-me um
aluno. Digam-me vocês, respondi-lhe.